BOURDIEU, Pierre. “Anexo: A casa ou o mundo invertido”. In: BOURDIEU, P. O senso prático; tradução de Maria Ferreira. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, pp 437-462.
Eixos de análise abordados:
Conceitos e métodos
Saberes tradicionais e espaço arquitetônico
Dados sobre o autor(es) e obra:
Pierre Félix Bourdieu (1930-2002) foi um dos sociólogos franceses mais importantes do século XX. Era filósofo de formação e dedicou-se também à antropologia. Bourdieu foi um pioneiro na delimitação e consolidação de conceitos como os de capital simbólico, social ou cultural e ainda de habitus e campo. Enfatizava em suas investigações o papel da prática na dinâmica social, no estabelecimento de relações de dominação e na construção de visões de mundo. Sua investigação sobre a sociedade cabila data dos anos 1950 e a ela se vincula o texto em exame. Este foi publicado pela primeira vez em Echanges et communications – Mélanges offerts à C. Lévi-Strauss l’occasion de son 60e anniversaire. Paris/La Haye: Mouton, 1970, p. 739-758. O que consta da publicação utilizada nesta ficha é, segundo o autor (BOUDIEU, 2009, P. 437), uma versão “ligeiramente modificada” do original.
Resumo :
Bourdieu descreve a casa dos cabilas, da Argélia, relacionando espaço arquitetônico e universo sócio-cultural. Essa descrição, ilustrada com planta baixa e lay out, analisa a organização do interior da casa e as relações de oposição e complementaridade que mantém com o mundo exterior e com a cosmologia cabila. Bourdieu demonstra que esta casa mais do que produto de injunções ambientais, climáticas ou econômicas, é produto das práticas sociais e da cultura desse povo. Observa que a compreensão do sentido do elemento espacial depende do entendimento das práticas estruturadas com relação a ele e aponta como nessa casa se expressa o sistema simbólico que opõe homens e animais, homens e mulheres, o dentro e o fora, seco e úmido, dia e noite, “fecundante” e “fecundável”. Essas mesmas oposições são estabelecidas também entre a casa e o mundo exterior. Nesta escala, a casa é associada às atividades biológicas (comer, dormir, procriar, dar à luz) e ligadas ao feminino, enquanto a vida pública e o trabalho no campo, que ocorrem no exterior e dos quais a mulher está excluída, são masculinos. Assim, a casa seria um “microcosmo organizado com as mesmas oposições que ordenam o universo”. Em suma, o “mundo da casa” se opõe ao resto do mundo segundo os mesmos princípios que o organizam e ordenam os domínios da existência. A oposição entre a casa e o exterior é marcada pelo limiar constituído pela porta de entrada, daí os vários ritos e interditos ligados a esse elemento que protegem o lar de ameaças externas e equilibram esses mundos opostos. A orientação da casa é então de suma importância. A parede da porta principal é edificada no leste e a parte mais alta, correspondente à extremidade onde fica o fogão, no norte. Dessa forma, o movimento de sair da casa é sempre feito em direção à luz, ao bom e ao bem, assim como a parede oposta à entrada principal, onde fica o tear e ocorre a vida social, está sempre também banhada pela luz. As ações cotidianas dentro da casa se realizam, portanto, também de acordo com a boa orientação, favorecendo a fecundidade e prosperidade. Essa ordem espacial coloca a casa como o inverso positivo do mundo exterior, pois a face interna da parede oeste funciona como a luz ou o leste interior e a oposta (do lado leste), que corresponde ao lugar de repouso, como o oeste interno. Analogamente, a parede norte corresponde ao sul pelo lado interior e a extremidade sul, onde fica o estábulo, ao norte interno. Em suma, exterior e interior da casa são espaços simétricos obtidos por semi-rotação do eixo do limiar. Este constitui a fronteira mágica que reúne os contrários e inverte o mundo de modo que os espaços de dentro e de fora sejam igualmente favorecidos quanto “aos movimentos do corpo e aos trajetos sociais”. Esses espaços são, contudo, hierarquizados, pois a orientação da casa, lugar do feminino, é definida pelo exterior, ou seja, a partir do ponto de vista masculino.