AMORIM, Genoveva Santos. Entre viajar e morar: narrativas sobre a territorialidade Kulina. 2019. 301 f. Tese (Doutorado) - Curso de Antropologia Social, Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2019.
Eixos de análise abordados:
Território e etnicidade
Dados sobre o autor(es) e obra:
Doutora e Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Amazonas (PPGAS – UFAM), desenvolveu trabalhos antropoligicos de campo entre os Kulina do Baixo Juruá (AM) e os Katukina do Rio Biá (AM), sendo pesquisadora na área de gestão territórial indígena, etnicidade e territorialidade, sendo também falante da língua Kulina.
PARTE I – O TERRITÓRIO DA CABEÇA E AS FRONTEIRAS ÉTNICAS
Capítulo 1: Vida e morte do pajé Dami Kulina relacionando os Kulina, os Katukina e os Kanamari
Capítulo 2: Os Kulina, os Deni e os jahua madija
PARTE II – O TERRITÓRIO DO RAMI: AS PLANTAS, OS SERES EXTRA-HUMANOS E OS MORTOS, PROTEGEM E DEMARCAM A TERRA
Capítulo 3: O território do Rami e a volta dos vivos ao local da antiga aldeia Juruapuca
Capítulo 4: A dinâmica de morar no território Kumaru
Capítulo 5: A reocupação Kulina da cidade de Juruá
PARTE III – O TERRITÓRIO COMADE: IMAGEM, CONHECIMENTO E OS DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
Capítulo 6: Os processos de educação escolar indígena e o território comade
Capítulo 7: Suicídio, violência e processo de alcoolização
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
GLOSSÁRIO
ANEXOS
Resumo :
A autora entende que a partir do estudo sobre a forma de organização territorial Kulina é possível entender os processos de estabelecimento e reocupação dos territórios tradicionalmente ocupados por este povo e entender as questões contemporâneas, como violência, suicídio e alcoolismo entre seus membros, além de suas relações com política e etnicidade. A autora estuda também a relação interétnica entre os diversos grupos e subgrupos (unidades sociais endogâmicas localizadas próximas geograficamente) Kulina, Kanamari, Katukina e Deni, etnias que habitam a região do baixo Juruá. Essa relação é marcada por xamanismo, língua e outros elementos culturais que, ao mesmo tempo que aproximam, mas também distanciam esses grupos, estabelecendo fronteiras étnicas. Os Kulina falam língua própria e geograficamente estão presentes no Peru, no Amazonas e no Acre, nas regiões de várzea no alto, médio e baixo Juruá, e nos rios Jutaí e Purus, ambos no estado do Amazonas. Considerando os limites geográficos estabelecidos pelo sistema de demarcação de terras indígenas, os Kulina estão localizados na Terra Indígena Kumaru (TI Kumaru) do lago Ualá, na margem direita do baixo rio Juruá, próximo à confluência deste com o rio Solimões. É difícil determinar a quantidade de aldeias e seus habitantes pois, pelo sistema de ocupação territorial Kulina, são constantes os movimentos de migração. Este povo entende essas migrações como “passeios”, que provocam alterações significativas tanto no contingente populacional de determinada aldeia como dentro da própria TI e, até mesmo, dentro do estado. O território, na cosmovisão Kulina, é entendido como uma mistura de algo construído e imaginado, dividido como território de morada dos humanos; território dos não-humanos, como a floresta, que é um território de conhecimento; e o território dos extra-humanos, sendo este o território do imaginário xamanista. O jeito de morar Kulina não é determinado por um espaço fixado e sim a partir da transmissão de conhecimentos históricos e da produção de memória e do imaginário coletivo, mas também do construído, como as aldeias e cidades relacionadas à sua trajetória. Dessa forma, o território Kulina seria traçado a partir de aspectos históricos, simbólicos e afetivos. O Kulina pode sair de um território, mas lá ainda permanecem seus mortos (cemitérios), plantas cultivadas (terreiros) e os seres extra-humanos, como o Rami, associado à planta conhecida como ayahuasca, que é utilizada no ritual Kulina em que se ingere um chá alucinógeno para contato com esses seres. A planta utilizada para a preparação do chá a e sua localização na aldeia são de extrema importância na territorialidade Kulina e as ações do Rami são vistas como protetoras e guardiãs do território. Dessa forma, este nunca é abandonado e, por vezes, os Kulina voltarão a ele como forma de reverência. É dessa forma que o território étnico se configura como geografia mítica. Ao chegar em um território anteriormente ocupado, os Kulina são capazes de identificar em meio à floresta os roçados antigos, os cemitérios e, principalmente, onde está plantado o Rami. Ou seja, os Kulina conseguem distinguir todos os seres que foram plantados no local e, desta forma, estabelecem um vínculo permanente com ele. Assim, não é incomum um Kulina possuir três ou mais casas em diversas aldeias com as quais estabelece vínculos deslocando-se entre elas. Essa forma de entendimento contradiz em grande parte o conceito estatal, que associa um grupo de indivíduos a limites geográficos definidos, entendendo a propriedade como sendo particular e fixada e que, além disso, enxerga a Amazônia como um grande vazio a ser explorado. Ou seja, não se compreende a dinamicidade da cultura e da etnicidade Kulina. Essa diferença é motivo de grandes preconceitos e conflitos envolvendo índios e não-índios, sendo este um dos motivos relacionados à violência vivenciada pelos Kulina na cidade de Juruá e no território Juruapuca. O entendimento sobre estes territórios tradicionalmente ocupados e dos quais os Kulina foram expulsos em 1989 pela implantação da Reserva Extrativista do Baixo Juruá, é composto por uma série de narrativas que discorrem sobre a importância da reocupação, iniciada em 2002. Contudo, foram expulsos pela própria Fundação Nacional do Índio (FUNAI), ou seja, pela entidade que deveria protegê-los e auxiliá-los nesse processo, que não compreendeu seus fatores culturais e, depois de diversos conflitos, convenceu-os a fazer uma aldeia próxima ao antigo local. Os Kulina deixam claro que andar pela cidade de Juruá, é andar dentro de uma aldeia Kulina, apesar de todo o preconceito vivenciado por eles na cidade e de todas as tentativas de expulsá-los completamente desse território, inclusive por determinações judiciais. Nesse contexto, a autora discute questões de acesso a políticas públicas e à demarcação de terras e cita que, em reuniões entre autoridades públicas e líderes Kulina, houve incentivos ao agrupamento em um único local para que não mais morassem dispersos. Isso seria, porém, uma tentativa de acabar com um aspecto importante da cultura desse povo, que é a forma de organização territorial. A autora ainda apresenta numerosos casos de descaso dos não-índios para com o território indígena e a ineficiência das políticas públicas para protegê-lo, considerando-se principalmente as terras demarcadas para uso exclusivo dos Kulina. Esse modelo de demarcação de terras, ao mesmo tempo que garante o direito ao uso da terra, também implica a utilização do território por vários subgrupos, impossibilitando ou dificultando os deslocamentos. A autora aponta ainda que a falta de acesso à terra e a condições de reprodução da vida cultural, conduzem a problemas de saúde mental entre os indígenas, levando muitos inclusive a problemas com alcoolismo e ao suicídio. No que se refere aos locais de escolha para ocupação, é possível perceber que, na concepção Kulina, lugar bom de morar é aquele que oferece frutas e demais alimentos de qualidade e quantidade, peixes grandes para pescar, boa caça e proximidade a postos de saúde. Também consideram importante, as pessoas que moram na aldeia (se há hábitos de bebida, brigas e fofocas). Quanto à construção das casas, a autora não trata especialmente deste aspecto, mas cita rapidamente que os Kulina criam animais soltos, como porcos, galinhas, cachorros, entre outros, que costumam ficar na parte inferior das casas, que são elevadas do solo. Dessa forma, comem as migalhas e resíduos de alimentos que passam pelo assoalho. Essa tipologia faz sentido considerando-se que habitam regiões de várzea.